Numa varanda aberta sobre a noite, ergue-se um rochedo. Este poderia ser o início de um sonho, no qual uma figura híbrida, a um tempo magnética e inquietante, capta o nosso olhar. Dorso masculino, com braços tentaculares e cabeça de alien, meio nuvem, meio asa, essa personagem, de pescoço fino e enroscado sobre si mesmo como um tecido, parece celebrar sozinha, perdida sobre lembranças de tempos passados. A celebração tem, contudo, algo de perturbador, não apenas pela anatomia estranha da figura, cuja máscara acaba de cair, mas também pelos cálices com garras como pés que parecem erguer-se de uma poça de sangue. A transformação desses objetos em seres é especialmente notória no que pousa as suas garras no ombro da figura central, enquanto deixa escapar um vapor hipnótico.

Uma evocação de - fin de siècle
, com damas de vestidos compridos e sombrinhas, desenrola-se no plano de fundo da composição. Grupos de pessoas passeiam na distância, perdendo-se na paisagem inóspita com estranho à vontade. Longe da figura do plano central, essas outras passeiam entre as pernas esquálidas daquela que se confundem com a paisagem. Como num sonho, os descontraídos passantes avançam sem se dar conta de passearem no meio de um corpo alheio.

O negro da noite, atravessado por áreas mais luminosas que lhe conferem profundidade e textura, contrasta com a paleta de vermelhos e rosas, que dá às figuras centrais uma aparência carnal, inquietante. E é nesse negro profundo e com algumas fantasmagóricas manchas de luz que encontramos suspensa sobre a cabeça da criatura, mas ao alcance da sua mão, uma enorme e épica borboleta, última promessa de voo.



Emília Ferreira